sexta-feira, 28 de junho de 2019

Chilling Adventures of Sabrina




Olá galerinha do Baxter High e da Academia das bruxas. Para quem não assistiu a série da Netflix "O Mundo Sombrio de Sabrina" super recomendo e aproveito para deixar um alerta de spoiler...


Análise de obra ficcional televisiva
(Chilling Adventures of Sabrina)


        Segundo a Wikipedia, Chilling Adventures of Sabrina é uma série televisiva criada por Roberto Aguirre-Sacasa para a plataforma streaming Netflix e baseada em quadrinhos de mesmo nome, lançada em 26 de outubro de 2018, ambientada nos anos 60. A série também pode ser considerada uma releitura de uma produção anterior, Sabrina, the Teenage Wicht, lançada em setembro de 1996. Este texto pretende articular alguns estudos sobre bruxaria, inquisição e demonologia, na Idade Moderna, com as mitologias evocadas para a constituição dessa série estadunidense contemporânea.
        Sabrina é uma bruxa adolescente, vivendo um conflito identitário por ser metade bruxa, metade mortal. A partir daí, podemos depreender um conceito de bruxa já presente na obra incendiária dos dominicanos Kramer e Spranger, o Malleus Malleficarum de 1487: a ideia da bruxaria como um poder intrínseco à pessoa e um fator hereditário. A situação mestiça da personagem principal se dá pela união “ilícita” entre o pai bruxo e a mãe mortal. Evans Pritchard, em seu livro Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, fez uma distinção entre o conceito de bruxo e o de feiticeiro na região centro-africana, justamente atentando para o caráter hereditário do primeiro e o de aprendizado do segundo:

        Os Azandes acreditam que certas pessoas são bruxas e podem lhes fazer mal em virtude de uma qualidade intrínseca. Um bruxo não pratica ritos, não profere encantações e não possui drogas mágicas. Um ato de bruxaria é um ato psíquico. Eles creem ainda que os feiticeiros podem fazê-los adoecer por meio da execução de ritos mágicos que envolvem drogas maléficas. Os Azande distinguem claramente bruxos e feiticeiros. Contra ambos empregam adivinhos, oráculos e drogas mágicas (...) [Pritchard-Evans, E.E (Edward Evans): Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande; Rio de Janeiro; Ed. Jorge Zahar, 2005, pag. 33]

        Essa distinção empregada por Pritchard não se enquadra perfeitamente com o conceito de bruxaria utilizado na série norte-americana. Pode-se dizer que os bruxos de Chilling Adventures of Sabrina seriam tanto bruxos quanto feiticeiros, por possuírem poderes intrínsecos, herdados pelos genitores e por aprenderem ritos mágicos, envolvendo palavras específicas, acessórios especiais e manipulação de ervas. A Academia das Bruxas encarna esse caráter de aprendizado, além disso, a série incorpora um componente fundamental do mundo cristão, ausente na cosmovisão tradicional Azande, o Diabo. Apesar do fator hereditário, a real origem dos poderes bruxos seria o poder do próprio Lúcifer, considerando as bruxas como parte de seus agentes no plano terreno. Essa foi a visão cristalizada no Malleus Malleficarum. Desse modo, a hereditariedade não explica sozinha os poderes sobre-humanos dos bruxos que, dentro do universo demonológico, apresentam-se inseparáveis do pacto com o Demônio:

        (...)Consideremos, também, as autorizadas opiniões dos Padres que comentaram as Escrituras e que trataram em detalhes sobre o poder dos demônios e as artes mágicas. Podem consultar-se os escritos de muitos doutores a respeito do Livro 2 das Sentenças, e se comprovará que todos concordam em dizer que existam bruxos e feiticeiros que, pelo poder do diabo, são capazes de produzir efeitos reais e extraordinários, e não são imaginários, e que Deus permite que tal coisa aconteça. Sem mencionar as muitas outras obras em que São Tomás considera em muitos detalhes as ações deste tipo (...) [Tradução Alex H.S.; O Martelo das Bruxas, Brasil 2007, pag. 10]

        (...) Daí as bruxas, sem o exercício de um poder natural, e apenas com a ajuda do diabo, podem provocar efeitos danosos (...) [Tradução Alex H.S.; O Martelo das Bruxas, Brasil 2007, pag. 28]

        Devemos em especial observar que esta heresia, a bruxaria, não só difere de todas as outras, mas não apenas, no sentido de um pacto tácito, mas por um definido e expresso com clareza, para blasfêmia do Criador que se esforça ao máximo em profaná-lo e causar danos às Suas criaturas, pois todas as demais simples heresias não fazem um pacto aberto com o demônio, isto é, nenhum pacto tácito ou expresso, ainda que seus erros e incredulidades devam se atribuir, de forma direta, ao Pai dos erros e das mentiras. Mais ainda, a bruxaria difere de todas as demais artes perniciosas e misteriosas no sentido de que, de todas as superstições, é a mais conflitante, a mais maligna, e a pior, pelo qual deriva seu nome por fazer o mal, e ainda por blasfemar contra a verdadeira fé. (Maleficae dictae, a Maleficiendo, seu amate de fide sentiendo). [Tradução Alex H.S.; O Martelo das Bruxas, Brasil 2007, pag. 29]

        O Malleus, em seu esforço de apresentar uma teologia filosófica, argumenta a respeito da natureza distinta do Diabo em relação aos seres humanos. O Diabo, outrora conhecido como Lúcifer, seria um anjo caído, ou seja, criado anjo com poderes divinos superiores aos mortais humanos. A queda de uma parte dos anjos rebeldes, liderados por Lúcifer, não suprimiu seus poderes sobre-humanos os quais, agora, seriam utilizados para fins maléficos cujo objetivo principal era a perdição das almas, a profanação da obra do Criador. Essa distinção entre os anjos divinos bons ou maus e os meros mortais explicaria a impossibilidade da bruxaria de ser eficaz sem o suporte dos poderes demoníacos. Os anjos caídos, segundo o Malleus (O Martelo das Bruxas: Parte 1: Tradução Alex H.S. 2007, pag. 19) poderiam provocar malefícios sem o intermédio de bruxas, mas utilizavam as bruxas como instrumento porque desejavam corromper e causar a perdição de suas almas. Assim, as bruxas figurariam não apenas agentes do Diabo como suas mais profundas vítimas.
        A primeira temporada da série enfoca ao longo de vários episódios o tema do pacto, abordando vários aspectos da questão. Apesar da relutância de Sabrina em aceitar esse contrato diabólico, tudo termina ocorrendo de acordo com os planos incontornáveis do senhor das trevas. O fato de nascer bruxa implicaria um laço inexorável com o Anjo Caído, pois, como já dito, os poderes dos bruxos seriam uma espécie de concessão do Diabo, da mesma forma que os atos miraculosos seriam uma manifestação do poder do próprio Criador. Esse fato foi exemplificado na série pelo surgimento de anjos caçadores de bruxos que possuíam poderes sobrenaturais de natureza diversa da bruxaria. Dentro dessa lógica expressa na série e gestada desde o medievo europeu, os seres humanos eram reles mortais, dependentes da tutela, seja da divindade trevosa, seja do Criador Cristão. O Deus criador assim como seu anjo rebelde seriam as únicas fontes possíveis de poder. Desse modo, realizar proezas sobre-humanas necessariamente ligaria o prodígio a uma das forças divinas. Em outras palavras, como demonstrado na série, renegar o Diabo, renunciar ao pacto, seria equivalente a renunciar aos poderes bruxos.
        Essa ligação intrínseca entre as bruxas e o Diabo trouxe outras sérias implicações apontadas, por exemplo, por Trevor Roper, estudioso das bruxas na Idade Moderna. Ainda que a mulher denunciada como bruxa não tenha realizado nenhum malefício, o simples fato de ser considerada bruxa já denotaria uma renegação a Cristo, à fé católica, uma heresia, uma profanação, tudo isso encarnado na ideia do pacto. Desse modo, essa mulher poderia ser penalizada, pois o próprio ato do pacto já envolvia em sua cena, segundo acreditavam os inquisidores, a inversão das liturgias e dogmas católicos com sua adoração ao Demônio, suas orgias e antropofagias, envolvendo crianças:

        (...)A bruxa, como veremos, é perseguida simplesmente por ser uma bruxa; o judeu por ser um judeu, por razões não de crença mas de sangue, por defeito de “limpieza de sangre”. [Roper, Trevor: A Crise no século XVII: Religião, A Reforma e Mudança Social; Ed. Topbooks, 1967, pag. 172]

        (...) Assim, na ausência de um “grave indicium”, tal como um pote cheio de membros humanos, objetos sagrados, sapos, etc. ou pacto escrito com o Demônio (que seria uma peça rara de colecionador), um indício circunstancial era suficiente para mobilizar o processo. E o indício circunstancial não precisava ser muito convincente: era suficiente descobrir uma verruga pela qual o espírito família era amamentado; um sinal insensível que não sangrava quando picado; uma capacidade para flutuar quando lançado na água ou uma incapacidade para verter lágrimas. Era possível recorrer até mesmo a “indicia mais leves”, como uma tendência para olhar para baixo quando acusado, sinais de medo ou simples aspecto de uma bruxa, velha, feia ou malcheirosa. Quaisquer desses” indicia” poderia estabelecer um caso de “prima facie” e justificar o uso de tortura para produzir a confissão, que era a prova, ou a recusa a confessar, que era prova ainda mais convincente, e justificava ainda torturas mais violentas e uma morte mais horrível. [Roper, Trevor: A Crise no século XVII: Religião, A Reforma e Mudança Social; Ed. Topbooks, 1967, pag. 186]

        A Igreja, noiva recatada e obediente a Cristo, comungando de seu corpo sacrificado e transubstanciado, transforma-se na prostituta do Diabo, rebelde à doutrina católica e às convenções sociais, mimetizando a comunhão sagrada através de uma blasfêmia hedionda. Fica assim pintada a imagem pitoresca do “sabá” e sua missa invertida, imagem construída, muitas vezes, a partir de confissões colhidas sob a pressão das torturas amalgamadas a crenças populares preexistentes.
        A imagem do “sabá” como inversão da missa católica e das bruxas como noivas do Diabo, parodiando a Igreja como noiva de Cristo, foi materializada na cena do aniversário de Sabrina em que ela se tornaria, efetivamente, bruxa, ao assinar o livro da besta, em outras palavras, realizar o pacto de sangue com o Demônio. Antes de participar da cerimônia satânica, a protagonista desolada, resolve se despedir dos seus amigos mortais e utiliza um vestido de noiva como fantasia de um baile encetado pelo seu colégio comum. Nesse capítulo, ela renega o Diabo, temerosa de sua liberdade, ao passo que é lembrada pelas suas tias bruxas que perderia os poderes caso não consumasse o pacto, reforçando o argumento sobre a fonte do poder bruxo e explicitando a relação assimétrica entre bruxas e o Demônio.
        Na cena específica da renúncia ao pacto, vemos um ambiente sombrio e sinistro no interior de uma floresta. O ritual de passagem para o mundo bruxo inicia com a emblemática transformação do vestido branco em vestido preto, sob a luz de uma lua de sangue, opondo-se ao signo solar. Vários bruxos reunidos e alguns portando máscaras assustadoras, com sangue pelo corpo, animais sacrificados e um nítido tom de grande solenidade com o padre da Igreja satânica presidindo a reunião, esse é um “sabá” mais próximo da concepção moderna tradicional, a concepção inquisitorial que insistia na existência de reuniões frequentes em florestas tarde da noite para profanar os sagrados dogmas católicos, aliás, as palavras - profana e profanação - são corriqueiras na série para referir-se subversivamente aos rituais da Igreja satânica em contraposição explícita à Igreja católica e ao chamado falso deus.
        O “sabá” das bruxas, tema bastante recorrente nos manuais demonológicos da modernidade, apareceu na série, principalmente, nessa cena do pacto, a assinatura de Sabrina com o próprio sangue no livro da besta. O “sabá” remete a uma reunião misteriosa e demoníaca, no seio de florestas escuras sob a luz do luar. Essa crença nas assembleias satânicas parece ecoar antigos ritos ligados à fertilidade e à natureza, da mesma forma que a maneira peculiar de ir até o “sabá” conecta-se com crenças difusas estudadas por Ginzburg em regiões que abrangem o norte da Itália, partes da Alemanha e região balcânica. Há uma crença em que pessoas são capazes de sair do corpo na forma de espíritos, em determinadas épocas do ano, para lutar contra feiticeiros também em forma de espíritos,  a fim de garantir boas colheitas (Ginzburg, 1988, pag. 25). Hoje, certas correntes espiritualistas poderiam facilmente identificar essas saídas noturnas como projeções astrais, projeções da consciência ou experiências fora do corpo. No entanto, os manuais dos inquisidores falam em idas em carne e osso, portanto vassouras mágicas, entre outras artimanhas.
        Em Chilling Adventures, o tema da projeção astral aparece variadas vezes, mas não evocando os cultos agrários, as batalhas entre bruxas e benandantis (Ginzburg, 1988, pag. 22), as procissões junto aos mortos ou o mito do exército furioso e suas cavalgadas noturnas lideradas por uma divindade feminina, identificada como Diana em algumas regiões da Europa, a mesma Diana referenciada no próprio Malleus (Trad. Alex H.S., 2007, pag. 9). Na série, a habilidade de sair do corpo surge mais ligada a assuntos pragmáticos como o encontro amoroso do personagem Ambrose ou uma tentativa de alertar os amigos mortais por Sabrina. Contudo, a execução do ritual feito de barriga para cima, associado aos diversos perigos do plano astral, podendo levar à morte fazem eco nas crenças do final do medievo e do início da modernidade europeia que imaginavam essa visita ao mundo dos espíritos como bastante perigosa. Caso o corpo do sensitivo fosse contemplado e iluminado ou fosse enterrado por engano, por exemplo, o espírito ficaria impedido de voltar e vagaria por aquela dimensão até expirar o tempo de vida a ele destinado, segundo os depoimentos dos chamados benandantis, estudados por Ginzburg:

        Frei Felice objeta: “Se vós dormíeis como respondestes a eles e como ouvistes a sua voz?” E Paolo: “ O meu espírito lhe respondeu” e explica que é o espírito deles que parte “ e se por acaso na nossa ausência, alguém for iluminar o nosso corpo para contemplá-lo, naquela noite o nosso espírito não poderá voltar, enquanto estiver sendo observado; e se o corpo parecendo morto for enterrado, o espírito irá vagar pelo mundo até o momento previsto para a morte do corpo” (...) [Os Andarilhos do Bem; Ginzburg, Carlos; São Paulo, Companhia das letras, 1988, pag. 27]

        Voltando à cena do pacto, podemos notar que a relutância da protagonista em assinar o livro da besta gira em torno da questão da liberdade e do livre-arbítrio. Nesse quesito, é interessante observar mais uma vez o contraponto ao mundo cristão, um contraponto que se revela ambíguo na série. Criticando os paradigmas cristãos, o personagem que encarna a autoridade da Igreja sombria, padre Faustus, alega representar a verdadeira liberdade, sem as castrações impostas pelos dogmas católicos. Longe da imagem malévola alimentada pelos cristãos, Lúcifer seria o promotor da liberdade. Contudo, o desenrolar da série contradiz a imagem do Diabo benevolente e apresenta o mais ardiloso dos tiranos. A série parece criticar as duas ortodoxias, a luciferana e a cristã, introduzindo Sabrina como uma espécie de terceira via, lutando entre dois mundos intolerantes e preconceituosos.
        As contraposições constantes entre forças do mundo cristão e suas representações especulares com imagens invertidas uma da outra ocultam o silenciamento perverso das cosmovisões não-cristãs e não enquadradas nos referenciais desse sistema teológico. O caso dos benandantis já citado é apenas um exemplo de crenças com referenciais próprios, lógica interna autônoma e que, nesse caso, termina sendo engolido pelo feroz enquadramento inquisitorial cristão. Podemos citar também a divindade africana Exu, identificado com o Diabo cristão, a fim de ganhar inteligibilidade para os conquistadores portugueses, uma falsa inteligibilidade, pois esse enquadramento forçado distorce completamente o sistema de crenças do qual a entidade faz parte.
        Outro ponto fundamental na série é a centralidade das mulheres. É ponto pacífico entre os estudiosos da perseguição às bruxas que o principal alvo do Santo Ofício eram as mulheres, focando no estereótipo criado da velha, solteira, sozinha e geralmente pobre. As mulheres não tuteladas por homens pareciam sempre perigosas, uma subversão à ordem reinante. Nota-se que as bruxas, apesar de sua rebeldia para com as leis do Deus católico, acabavam por submeter-se às leis de outra figura masculina, o Diabo. A possibilidade dessas mulheres terem poder era tão impensável que suas artes misteriosas só poderiam ser possíveis graças ao Demônio. Outra vez o padre Faustus exemplifica explicitamente a misoginia hegemônica, apegado a valores antigos. Sabrina recusa a tutela de Deus e do Diabo, recusa a obediência cega àquelas figuras masculinas dominantes, ela ousa trilhar o próprio caminho, demonstrando seu próprio poder.

        Seja lutando contra os Blackwoods, contra os brutamontes preconceituosos do Baxter High ou desafiando o senhor das trevas, Sabrina fez as escolhas que lhe foram negadas pelas autoridades temporais ou espirituais. A personagem Lilith, esposa de Lucifer, que inicia sua aparição submissa ao seu senhor, parece inspirada por Sabrina a lutar pelo seu lugar ao sol. A segunda temporada termina com a ascensão de Lilith, uma mulher, ao trono do Inferno e a derrota de Lúcifer por Sabrina e seus amigos. Sabrina encarnou o livre-arbítrio, conquistando a liberdade, ao persistir no ato de escolher. Diante de aparentes destinos inexoráveis, a aprendiz de feiticeira decidiu narrar o impossível escrevendo com sangue no seu próprio livro.


Espero que tenham gostado sem se assutar ^^ e até o próximo post...

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O Jesus histórico entre textos e contextos






Olá galerinha do reino dos céus. Vamos falar do homem de mais de 2000 anos...

     Mais de 2000 anos separam o pesquisador contemporâneo daquele que protagonizou uma ruptura de enormes proporções na história do chamado Ocidente. Uma ruptura na própria concepção de história onde predominava o eterno tempo cíclico, permitindo, junto à outros inúmeros influxos, o desenvolvimento futuro da disciplina História, tudo isso, claro, observado retrospectivamente, porque o cristianismo recém-nascido emergira como uma tendência quase insignificante do tronco judaico, composto por um pequeno grupo de pessoas “comuns” e anônimas envoltas nas densas brumas do tempo.
       A distância entre o historiador e seu objeto de estudo pode ser um fator benéfico para inalcançável e incontornável alvo da objetividade que sempre será maculado para uns e colorido para outros pelos primas caleidoscópicos da subjetividade. No entanto, ainda que o fazer historiográfico atual admita uma ampla gama de fontes e um alargamento da noção de documento é fato notável a escassez documental a medida que recuamos mais e mais no tempo. Essas areias desérticas da história são, por vezes, pontilhadas por alguns oásis esparsos, verdadeiros faróis do conhecimento antigo. Nesse caso específico, lidamos com poucos documentos de cunho explicitamente evangélico (não histórico ou biográfico no sentido preciso do termo) e de autoria cristã, por isso a dificuldade em enxergar outros primas do caleidoscópio, capazes de evitar os perigos da narrativa unilateral.
      Como se não bastassem as dificuldades apontadas acima, tudo torna-se mais complicado quando resolvemos abordar um tema por demais espinhoso, um tema capaz de mobilizar as paixões mais viscerais, seja dos adoradores do Cristo ou seja dos seus inúmeros detratores. Para além do plano da fé individual ou da ausência dela no sentido espiritual, nos deparamos com as feridas abertas deixadas pela separação formal e gradual entre a Religião e a Ciência ocidentais, efetivada durante o séc. XIX. Religião, representada nesse Ocidente pela toda poderosa Igreja Católica e seus famosos conflitos, principalmente na Idade Moderna envolvendo todos os pensadores que colocassem em xeque seus preciosos dogmas. A Ciência cientificista saiu vitoriosa da querela secular e caiu nas graças do povo (enquanto Hiroshima e Nagasaki ainda permaneciam de pé), contudo a Religião conseguiu preservar seu pedacinho do céu fora das garras da curiosidade científica. E como a mente humana trabalha através de variadas associações, então fica claro o tamanho da dificuldade para o historiador atual: religião, igreja católica, Jesus Cristo, inimigos da ciência, anti-científico, fé, espiritual, metafísica, Jesus histórico etc.
      Essa contextualização faz-se necessária para compreender os cuidados hercúleos tomados por Dominic Crossan a fim de acessar da melhor maneira possível, dentro dos parâmetros da disciplina História, o famigerado Jesus histórico. A necessidade de contextualização é reiterada repetidas vezes por Crossan em seu artigo:

      A separação e o estudo desconectado do contexto histórico e texto do evangelho, nos quais nenhum dele pode influenciar decisões a respeito do outro.
      O estudo do contexto antes do texto: o contexto histórico da Galiléia de Herodes Antipas na década de 20 do século I d.C. deveria ser estabelecido antes do estudo dos textos dos evangelhos cristãos.
       O estudo do contexto sem o texto: o conteúdo histórico deveria ser estabelecido separadamente de qualquer evangelho cristão. Na medida em que o evangelho cristão, a partir da sua natureza da sua função de Boa Nova, sempre envolve uma reinterpretação altamente criativa de uma dada tradição, os contextos dos anos 20 a 90 são progressivamente unidos (...)” [CROSSAN, John Dominic. Texto e contexto na metodologia dos estudos sobre o Jesus Histórico. In: CHEVITARESE, André; CORNELLI, Gabrielle; SLEVATICI, Monica (org.). Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo: Annablume, 2006, pp. 165-166.]

      Para além da questão da importância do contexto de modo mais global, Crossan hierarquizou o processo de contextualização em três níveis distintos, do mais geral ao mais específico respectivamente: nível antropológico, histórico e arqueológico. Como citado acima, ele enfatiza a necessidade de estudar a fundo esses contextos antes de examinar os textos evangélicos, desse modo, evitaria olhar para os contextos a partir das lentes textuais, podendo o pesquisador com isso endossar inadvertidamente as narrativas evangélicas ou perder-se no emaranhado dos diferentes olhares. Isso não significa que o  autor desconsidere a relevância da interatividade entre texto e contexto, não apenas os contextos da época estudada como o próprio contexto formativo do pensamento do autor, o contexto presente. Em outras palavras e nas palavras dele, um diálogo constante.
      Outro cuidado de Crossan que, na realidade reflete muito mais uma opção declarada seria de privilegiar os documentos considerados mais antigos que supostamente estariam mais próximos dos testemunhos oculares da vida de Jesus. O autor não pressupõe que a antiguidade seja sinônimo de fidelidade maior aos fatos narrados, apenas aponta seu recorte no que se refere às fontes trabalhadas, frisando a vinculação da escolha ao relativo consenso da comunidade científica a respeito da autenticidade dessas fontes.
       A respeito das principais fontes elencadas para compreender o Jesus histórico, o autor adverte para inevitabilidade de outra escolha deliberada: as dependências, independências ou interdependências entre os evangelhos sinóticos e entre os outros textos do Novo Testamento utilizados, sem contar com os chamados textos veterotestamentários, os intertestamentários e os apócrifos ou gnósticos posteriores. Quem seria anterior a quem? Quem seria fonte de quem? Quem teria influenciado quem e/ou quais seriam as influências mútuas? Para tentar responder essas questões, a escolha de Crossan foi declarada, consciente da imprescindibilidade dessa escolha assim como de sua dose de arbitrariedade, visto que não goza de consenso absoluto entre os estudiosos do assunto. A arbitrariedade, no entanto, decorria da natureza das fontes e não da irresponsabilidade ou desonestidade intelectual do autor que, aliás, faz o possível para debela-la e persuadir seus colegas pesquisadores a partir dos seus profundos estudos de contextos e de exegese bíblica, recorrendo a linguística, a antropologia, a história e à arqueologia, por exemplo. Assim fica ilustrado o caráter interdisciplinar de sua metodologia.
         Crossan concorda com existência de uma fonte escrita Q, anterior aos evangelhos, produzida na época apostólica, mais ou menos contemporânea das epístolas paulinas que teria sido a fonte dos evangelhos posteriores, iniciando por Marcos. Mais que isso, ele infere a existência de uma fonte escrita mais antiga, uma espécie de proto-Didaquê, analisando semelhanças e diferenças entre determinados ditos que aparecem nos sinóticos, em Paulo e em Didaquê. Sem contar com a tradição oral anterior a esses escritos, mas que estaria refletida na diversidade de formas encontradas neles, quanto a construção das frases e quanto a ordem em que aparecem.
         O Jesus histórico seria o mesmo Jesus da fé? Do ponto de vista metodológico, mais importante que responder corretamente essa questão seria atentar para o perigo das concepções a priore, conclusões feitas antes da pesquisa que denotam uma atitude anticientífica e deformam seu objeto de estudo a imagem e semelhança de seu pseudo-pesquisador.  Vale lembrar do racha entre Ciência e Religião citado acima em que a fé foi relegada ao campo metafísico e por isso mesmo fora da área de interesse científico ou mesmo considerada inacessível à pesquisa científica, em outras palavras uma questão de fé simplesmente. Do mesmo modo Jesus, personagem central de umas das maiores religiões do planeta havia sido relegado ao campo da meta-história, com sua existência questionada ou considerada fora do campo de interesse da História. Uma questão de fé, diriam eles, porém muito mais uma questão de método e acima de tudo uma questão de paradigmas.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Aprendendo a Ensinar


27/05/2017
Série: Redações
Pedagogia da Autonomia
Autor do livro: Paulo Freire
Cap. I: Prática docente : primeira reflexão


     Aprender é um processo contínuo, ininterrupto, diversificado. Aprendemos desde o nascimento até o momento da morte, o último respirar. A prática do ensino não seria diferente. Ensinar integra o processo de aprendizagem, seja ele formal ou informal. Aprendemos enquanto ensinamos e aprendemos a ensinar enquanto somos ensinados. Paulo Freire identifica esse processo de ensino-aprendizagem onde educadores e educandos constituem um continuum, elementos intrinsecamente interligados. Uma relação muito mais horizontal e dialética.
      O livro inteiro versa sobre o que ele denomina de exigências do ensinar. A cada capítulo nos são apresentadas uma lista daquilo considerado fundamental à prática educativa. Faremos aqui análises sumárias acerca de cada exigência com vistas à estimular a leitura da obra completa.
       Rigorosidade metódica. Freire inicia frisando a importância do rigor metodológico, próprio do procedimento científico sem o qual a prática docente careceria de credibilidade e seriedade. O domínio dos conteúdos, a preparação das aulas, tudo deve girar em torno da qualidade do ensino. Contudo Freire critica o denominado por ele de ensino bancário, focado no acúmulo excessivo de conteúdos desconectados da realidade sócio-politico-econômica do estudante. Os conteúdos deveriam emergir da realidade concreta, não como um laisser-faisser, mas sob orientação metódica do educador que valorizaria o aprendizado originado nas vivências cotidianas, na empiria, no senso comum.
        Pesquisa. Basicamente o autor invalida a dicotomia existente entre professor e pesquisador. Lecionar e pesquisar seriam duas faces da mesma moeda. O processos necessários ao ensinar seriam impensáveis sem a pesquisa científica. Mais que isso, a própria pesquisa seria um trabalho vazio sem o ensino, associado a divulgação, propagação dos objetos pesquisados.
       Complementando a ideia de horizontalidade e conexão dos conteúdos à realidade dos estudantes, faz-se imprescindível o respeito aos saberes adquiridos pelos estudantes no seu percurso de vida. Diferente de educadores mais antigos, Freire não acredita no aluno(ser sem luz própria) enquanto uma folha em branco, na qual o professor iluminado iria imprimir seus conhecimentos, transmiti-los unilateralmente. O ponto de partida do professor seria justamente a bagagem trazida pelo estudante, tomando cuidado com abordagens arrogantes que inferiorizam os aprendizes. Afinal, aprendizes somos todos, sempre.
         Pensar criticamente constitui um desafio. Ensinar a pensar criticamente, um desafio muito maior. Para Paulo Freire a criticidade representaria uma superação do paradigma originário e não uma ruptura com esse paradigma, nomeado por ele de curiosadade ingênua. Essa ingenuidade seria superada pela curiosidade epistemológica, de caráter cientifico a partir de reflexões e confrontos entre os conteúdos apresentados e a realidade concreta. A curiosidade, em essência, permaneceria a mesma, todavia seria criticizada, evidenciando o caráter sócio-político da educação. A educação jamais seria neutra, seja isso declarado ou não.
       Quem poderia pensar que vale tudo no exercício da docência? Honestidade, escrúpulos são valores fundamentais, inclusive para a construção de um conhecimento válido e validável. O autor chama de ética universal, o conjunto de princípios que devem regular a profissão docente a fim de torná-la viável. Quando nos deparamos com um autor com o qual discordamos, devemos ser justos em sua avaliação sem invisibilizá-lo ou colocar palavras na sua boca que ele jamais pronunciara. E para quem crê na irrelevância das formas em face ao conteúdo, Freire pondera. A estética seria igualmente primordial. A estética da sala de aula, a estética da própria aula, do falar, do agir. A estética da escola, das instituições. Tudo isso passa mensagens não verbais que corroboram ou contradizem nossos discursos verbalizados.
     Falando em discursos não verbais, precisamos lembrar do valor do exemplo. Nossa postura, atitudes, gestos, olhares, tons de voz. Nossa vaidade ou arrogancia em pequenas condutas. Nosso autoritarismo ao falar de democracia. Nossa indiferença para com nossos estudantes. A corporificação das palavras pelo exemplo permite que sejamos coerentes e multipliquemos nosso poder persuasivo.
      As turmas de estudantes são microcosmos da sociedade. Existe ali uma heterogeneidade, uma diversidade de ser e estar no mundo. Combater as muitas formas de discriminação é imperativo. Ao olvidar essas questões corremos sérios riscos de perder a atenção e consideração de muitos estudantes, além de permitirmos o crescimento das sementes do preconceito em cada um. Ensinar como qualquer atividade na vida, envolve riscos, por isso precisamos sair da zona de conforto se quisermos obter algum resultado relevante.
       Ensinar exige práxis, a reflexão sobre a própria prática. Os processos educativos são dinâmicos e sempre inacabados. Devido a isso a contínua reflexão sobre nossas práticas possibilita uma constante atualização de métodos e conteúdos, uma ampliação de nossos horizontes educacionais.

      Poder ser quem somos, integra um dos direitos mais básicos. Poder conhecer a nós mesmos, poder descobrir autonomamente quem somos. Permitir aos outros, serem quem são, permitir que sejam diferentes de nós. Autonomia que difere de independência e aí encontra-se o principal papel do professor, seu principal objetivo: contribuir para autonomização dos sujeitos, sua emancipação. 

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Receita Animada



17/09/2017
Série: Contos: Ânimo-Teórico-Metodológico
Autor: Mg Amaral


     Açúcar, ovos, fermento, farinha, chocolate, morango, creme de leite, leite condensado, ameixa, limão, biscoitos, maçã, etc, etc, etc. Quantos bolos possíveis? Quantos bolos deliciosos? Quantos bolos desastrosos? Tantos péssimos cozinheiros tão bem estudados! Tantos outros bons, desconhecendo os Universos universitários. A Vontade da Força. O ingrediente secreto, Amor? Mexe pra lá, mexe pra cá, por 10, 15, 20 minutos contados, recontados. Mas os ingredientes foram animados, estão vivos. Aí, complicou!
     Cada um pretende a prevalência do seu sabor, do seu traço. Quero de morango. Não, de chocolate! Limão, limão, limão!  Os ingredientes se empurravam uns aos outros, nada de obedecer à fila, nada de levantar as mãos. Era bolo ou torta, quente ou gelado. O tempo era curto. A cozinha, uma só. Necessário escolher. A escolha da frustração, da realização. A Chef de cozinha precisava pôr ordem naquilo, impor ou expor? Ela já ouvira falar de muitas ordens, contudo conhecia uma de muito tempo, de desde sempre que, bem ou mal, parecia funcionar. Grita, bate na mesa, e um pouco do chocolate acerta suas bochechas. O limão quase respinga nos seus olhos, o choro seria inevitável. Por que esses ingredientes tornaram-se animados? Ah, o passado idílico, todos tão quietinhos, esperando ser postos, em seus devidos lugares.
      A receita boa é essa! Eu estudei, eu sei! Minha experiência autoriza enfiar isso goela abaixo de todos vocês! Onde já se viu ingrediente animado? Voltem a seus lugares! Não era animação, era puro terrorismo! O tempo passava, a teoria do caos vivida na prática. O instituto não sei das quantas encomendara. Metas são metas, precisava cumprir. O emprego, o salário, todos os anos naquele Universo, agora, tão paralelo. Eles teimavam em se animar, verdadeiros looney ingredientes, lunáticos. Por um momento a Chef quase achou graça. Havia graça para achar? O que vocês estão fazendo aqui? Qual o seu objetivo? Quem vocês pensam que são, afinal? Silêncio... total! Tudo se aquietou, eles não sabiam. De repente, ela própria, enredada na rede silenciosa, percebeu que também não. Metade do tempo já virou pretérito imperfeito. A cozinha, uma verdadeira arte contemporânea com seus respingos de tudo, em todos os cantos.

        Em breve, chegaria um crítico gastronômico. Homem importante, de fora, de longe. A palavra, em forma de lei, como aquelas leis do mais alto dos céus. Diante dele, a Chef não passava de mero mortal. Mesmo assim, as réguas daquele sujeito pareciam tão arcaicas. O mundo não seria muito mais que altura e largura? Ela ainda não sabia as respostas das próprias perguntas, só sabia os silêncios intermináveis. Os ânimos arrefeceram por um tempo, mas permaneceram latentes, patentes. A curiosidade aguçada decide encontrar as respostas desses silêncios que a todos permeavam. Olhares meio desconfiados foram trocados. As mãos timidamente estendidas. Aperto. Iriam descobrir juntos e o crítico que tentasse engolir aquele ânimo renovado!

Ânimo Teórico-metodológico



12/08/2017
Anima Animus
Autor: MG Amaral
Série: Como fazer?

Ânimo Teórico-metodológico

     Você já deve ter passado, ao menos, alguns dias na casa de algum amigo ou parente e deve ter notado como eles fazem as tarefas domésticas, de maneira diferente da sua casa. Cada família ou indivíduo organiza as tarefas de maneira distinta, graças aos diversos modos de ser e estar no mundo. Cada um possui necessidades e prioridades diferentes, visões de mundo variadas e, por isso, as demandas e o modo de alcançá-las são diversos. Ainda assim, uns podem ser mais eficientes que outros, a depender de seus objetivos. Métodos: a maneira de lavar os pratos, por exemplo, deixando acumular para lavá-los no final do dia, ou lavando a cada prato sujo; da mesma forma, podemos pensar no modo de varrer a casa, arrumar a cama, etc. A Ciência também possui seus métodos? Cada disciplina, um método diferente? O próprio ato de estudar estaria sujeito a metodologias? Hora de pesquisar.

     Todas as ciências caracterizam-se pela utilização de métodos científicos; em contrapartida, nem todos os ramos de estudo que empregam estes métodos são ciências. Dessas afirmações podemos concluir que a utilização de métodos científicos não é da alçada exclusiva da ciência, mas não há ciência sem o emprego de métodos científicos.
      Assim, o método é o conjunto das atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia, permite alcançar o objetivo – conhecimentos válidos e verdadeiros – traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista. [Lakatos, Eva Maria; Marconi, Marina de Andrade; Fundamentos de metodologia científica – pg 65 -  7 ed. – São Paulo: Atlas, 2010]

     Trabalho científico é tomado aqui em sentido abrangente, envolvendo múltiplas perspectivas. De modo geral, refere-se ao próprio processo de produção do conhecimento científico, atividade epistemológica de apreensão do real; ao mesmo tempo, refere-se igualmente ao conjunto de processos de estudo, de pesquisa e de reflexão que caracterizam a vida intelectual do estudante; refere-se ainda ao relatório técnico que registra dissertativamente os resultados de pesquisas científicas, caso em que significa a própria monografa científica. [Severino, Antonio Joaquim, 1941; Metodologia do trabalho científico – pg 17 -24 ed. rev. e atual. – São Paulo: Cortez, 2016]
    
      A ciência utiliza-se de método que lhe é próprio, o método científico, elemento fundamental do processo de conhecimento realizado pela ciência para diferenciá-la não só do senso comum, mas também das demais modalidades de expressão da subjetividade humana, como a filosofia, a arte, a religião. Trata-se de um conjunto de procedimentos lógicos e de técnicas operacionais que permitem o acesso às relações causais constantes entre os fenômenos (...)[Severino, Antonio Joaquim, 1941; Metodologia do trabalho científico – pg 108 -24 ed. rev. e atual. – São Paulo: Cortez, 2016]

     Por quê? Para quê? Como? Por que estou produzindo esses textos? Por que estou criando essas vídeoaulas? Por que a insistência nesses tais mapas mentais? Por que tantas imagens? Por que desses textos coloridos? Quais seriam minhas intenções e finalidades? E como posso alcançar esses objetivos? Dinheiro? Também. Afinal, boas intenções não pagam boletos. Aprendizagem! Facilitar as aprendizagens dos meus estudantes é uma das principais metas. Possibilitar melhorias qualitativas, na vida dos aprendizes que interagem com minhas aulas. Ampliar horizontes, intensificar a autonomia dos sujeitos, alargar os raios de ação e intervenção na realidade, despertar ou fortalecer o ânimo pela vida, aprofundar as capacidades crítico-reflexivas. Mas por que eu investiria tempo e esforço nesses objetivos tão desafiadores? Visão de mundo, perspectiva. Meu olhar sobre a vida admite a interconexão de todos os seres vivos, destacadamente de nós seres humanos. Todos estaríamos emaranhados, numa rede de profundas conexões visíveis e invisíveis. A partir daí, prejudicar nossos semelhantes seria igual a prejudicar a nós mesmos; ajudá-los a desenvolverem-se seria ajudar, igualmente, a nós mesmos. Acredito que todos, em alguma medida, desejam viver melhor, desejam viver em um lugar melhor, ainda que o significado desse melhor possa variar, consideravelmente, de um para o outro. Sendo assim, meus esforços voltam-se, na medida de minhas limitações e potencialidades, na direção da construção de um mundo capaz de abrigar e manifestar nossos melhores sonhos!
      O trabalho pode ser fonte de desgostos, exploração, exaustão e desânimo, no entanto, também pode ser fonte de alegrias, satisfação e realizações. Isso depende, largamente, das intenções, dos objetivos, dos modos de organização, das interações estabelecidas, da remuneração, da valoração individual e social. Tenho o privilégio de trabalhar com algo valorizado por mim, de fazer o que gosto. Infelizmente, muitos não vivem assim. Porém, caso meu trabalho possa ajudar alguém nesse sentido, com certeza, terá sido de grande valia. Levar um pouco de cor à vida das pessoas.  Talvez, você tenha notado algo peculiar nesses textos. As cores! Inspirado nos ensinamentos do neurocientista Tony Buzan, criador dos esquemas de pensamento denominados de Mapas Mentais, resolvi colorir os textos. Um ato simples, carregado de simbologias e implicações. Por que o mundo adulto deve ser tão cinza, tão monocromático? Por que seriedade e qualidade estão tão atreladas à sisudez, à rigidez? Por que a rigorosidade deve acompanhar a severidade, beirando a hostilidade? Por que a ausência do humor, do sentimento, da poesia, na Ciência? Quem decretou a descoloração do mundo? Quem resfriou a Ciência tal qual um cadáver pálido? Não vemos na Natureza da Terra e dos espaços infinitos uma exuberância infindável de formas e cores? Não é esta Natureza exuberante, poética e misteriosa, o objeto vivo de nossos estudos? Por que restringir as cores aos usos da infância? Por que imaginá-las como uma ameaça à masculinidade de certos homens ou como a infantilização dos adultos, a perda da seriedade? Buzan, de maneira muito simples, nos fala do prazer estético, dos benefícios à memória, das conexões com nossa afetividade, proporcionadas pelo mero acréscimo de cores aos nossos estudos. Com tantos recursos gráficos à disposição, ficamos presos a padrões inflexíveis:

     Use CORES durante todo o processo. Por quê? Porque as cores são tão excitantes para o cérebro quanto as imagens. O uso da cor acrescenta vibração e vida ao seu Mapa Mental, fornece uma energia extraordinária ao Pensamento Criativo, e é divertido. [Buzan, Tony, Mapas Mentais e sua Elaboração: um sistema definitivo de pensamento que transformará a sua vida, pg 46, São Paulo, Ed. Cultrix, 2005]

      Os Mapas Mentais são esquemas de pensamento, métodos de sistematização e síntese das ideias. A partir de palavras-chaves, cores, linhas curvas, símbolos e imagens, o Mapa permite-nos condensar as ideias, num formato esteticamente atraente, análogo ao neurônio, evidenciando nossa personalidade e subjetividade, sem perder de vista o caráter técnico e objetivo. Meus textos são sempre acompanhados de Mapas Mentais para facilitar o entendimento e sintetização. Contudo, mais do que analisar meus mapas, minha proposta fundamental é a produção de mapas por parte dos estudantes, tendo, nos meus mapas, uma referência. A produção dos mapas possui um caráter avaliativo e autoavaliativo, no sentido de permitir ao professor avaliar o estágio de apropriação/construção do conhecimento pelos seus estudantes, assim como dos modos de organização objetiva/subjetiva desses conhecimentos. Permite também uma avaliação realizada pelo próprio aprendiz a fim de guiar seus novos estudos, além de valioso registro de informações integradas. Segundo Buzan, nosso cérebro trabalha a partir da imaginação e associações. Então, podemos ajudá-lo a trabalhar melhor com esse esquema:

      Todos os Mapas Mentais têm algumas coisas em comum: Todos usam cores, todos têm uma estrutura natural que parte do centro; todos utilizam linhas, símbolos, palavras e imagens de acordo com um conjunto de regras simples, básicas, naturais e familiares ao cérebro. Com um Mapa Mental, uma longa lista de informações áridas pode se transformar num diagrama colorido, fácil de lembrar e bem organizado que opera em harmonia com o funcionamento natural do cérebro. [Buzan, Tony, Mapas Mentais e sua Elaboração: um sistema definitivo de pensamento que transformará a sua vida, pg 25, São Paulo, Ed. Cultrix, 2005]

       Leia a palavra abaixo, impressa em letras maiúsculas. Em seguida, feche os olhos e mantenha-os fechados,  durante uns 30 segundos, pensando na palavra.
        FRUTA.
        Ao ler a palavra e fechar os olhos, imprimiu-se em sua mente a palavra FRUTA, como a impressão feita por um computador?
        É claro que não! O que o seu cérebro provavelmente gerou foi a imagem da sua fruta preferida, de uma bandeja com frutas ou de uma quitanda de frutas;  relacionou os sabores às frutas respectivas e, ainda “sentiu” seus aromas. Isso acontece porque nosso cérebro trabalha com imagens sensoriais, com conexões adequadas e associações que delas se irradiam. O cérebro usa palavras para disparar essas imagens e associações. [Buzan, Tony, Mapas Mentais e sua Elaboração: um sistema definitivo de pensamento que transformará a sua vida, pg 42, São Paulo, Ed. Cultrix, 2005]

          O seu cérebro irradia pensamentos em todas as direções.
          Elas produzem figuras tridimensionais com inúmeras associações que são especialmente pessoais para cada um de nós.
          O que você constatou com o “exercício da fruta” é que seu cérebro cria Mapas Mentais naturalmente! Ao fazer isso, você conseguiu algo ainda maior do que imagina e abriu caminho para um aperfeiçoamento notável do seu poder de pensar. Você descobriu como seu cérebro realmente trabalha. [Buzan, Tony, Mapas Mentais e sua Elaboração: um sistema definitivo de pensamento que transformará a sua vida, pg 43, São Paulo, Ed. Cultrix, 2005]


      Falar em avaliações, exames e provas dá calafrios e dores de cabeça a muita gente. Mas por que isso ocorre? As avaliações deveriam ser assustadoras assim? O problema estaria no caráter propedêutico de nossa educação, ou seja, o caráter seletivo. Uma educação onde cada nível de ensino se preocupa muito mais em selecionar os que estariam aptos aos níveis superiores do que em fomentar, de fato, o aprendizado de todos. Quais os objetivos da escola? Passar nos vestibulares, passar nos concursos, ingressar no ensino superior, favorecer o acesso a empregos bem remunerados? Não seria ensinar sobre a vida, sobre viver? Não seria favorecer o aprendizado o máximo possível? Não seria despertar potencialidades latentes, aflorar a criatividade, o pensamento crítico, a curiosidade investigativa? Nossos métodos andam de mãos dadas com nossos objetivos, muitas vezes, sem que percebamos. As notas deveriam ser o centro de nossas atenções ou nosso aprendizado? As notas medem com segurança nossos aprendizados? Existem formas de avaliar para além das provas tradicionais? Lembremo-nos dos mapas: as avaliações seriam como mapas de nosso aprendizado. Os mapas servem para nos auxiliar sobre as decisões, envolvendo nossos caminhos. Nesse caso, os caminhos seriam a própria aprendizagem. De quantas maneiras podemos nos expressar? Fala, escrita, prosa, verso, música, dança, teatro, desenho, jogos, áudios, vídeos, imagens, jornais, revistas, palestras, assembleias etc. Todas essas modalidades de expressão podem constituir formas válidas de compartilhar conhecimentos e propiciar avaliações e autoavaliações. Reflita e escolha as melhores maneiras de integrar seus conhecimentos e compartilhar com o mundo. Quanto mais formas, melhor e mais precisa será a avaliação. O conhecimento não deve ficar preso nas paredes do seu quarto, nem entre os muros das escolas. Identificar erros em nossos projetos, após a avaliação, não deve ser motivo de tristeza ou estagnação. A identificação dos erros deve servir para podermos refazer algo maior e melhor. Não tenhamos medo de errar. Precisamos nos livrar desse absurdo internalizado desde criança. Os erros são os degraus do aprendizado. Perguntar sempre que não compreender, seguir adiante, após as quedas inevitáveis. Não foi assim que aprendemos a andar?

    Desse mundo do ensino primário – algo informe e desordenado, compreendendo presentemente escolas estaduais, de matrículas, escolas municipais, com instalações geralmente inadequadas e com professores despreparados, e escolas particulares livres, todas ou de simples alfabetização ou de caráter, como vimos propedêutico e seletivo – passamos ao mundo do ensino médio.
     A transição tem algo de um salto. Não é apenas um novo nível, mas um novo reino, ou, então, a entrada definitiva no reino da educação seletiva. Como a marcar a violenta transformação, há que registrar o ritualismo que caracteriza a nova escola. A licença de organização, de programas, de métodos e formalismo mais estrito e por verdadeira inflexibilidade de organização. Distribui-se por cinco ramos esse ensino: o secundário, de caráter nitidamente intelectualista; o técnico-industrial, o agrícola, o comercial e o normal ou pedagógico.
       Teoricamente, o secundário seria propedêutico ao ensino superior, e os demais, de caráter profissional, destinados ao preparo dos quadros de nível médio de técnicos para a indústria, o comércio, a agricultura e o magistério primário. Na realidade, porém, todo esse ensino médio se vem fazendo propedêutico ao ensino superior, contentando-se com seu preparo para se iniciar no trabalho ativo apenas aquele grupo de alunos que, não conseguindo adaptar-se à rigidez dos seus padrões, acaba por abandonar o curso ou dele ser excluído pelas reprovações. [Texeira, Anísio; A escola brasileira e a estabilidade social; Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, vol. XXVIII, nº 67, 1957, pp. 9-10]     

     Quais conteúdos ensina um professor de História? História, vocês diriam, aquelas coisas “do tempo do ronca’, “do rococó”, “de onde Judas perdeu as botas”, “das poeiras dos museus”. Em parte, vocês estariam corretos, apesar da chamada História do Tempo Presente e outras questões teórico-metodológicas da História que não cabem nesse texto. O ponto-chave seria a restrição dos conteúdos aos conteúdos disciplinares dessa matéria. Como pesquisar, como sintetizar, como produzir um mapa mental, como ler, como interpretar, como cooperar, como trabalhar em equipe? Esses “como(s)” podem ser considerados conteúdos? O educador Antoni Zabala nos chama atenção para a existência dos conteúdos, nomeados por ele de procedimentais e atitudinais, muitas vezes, ignorados pelos professores. Também nos adverte sobre o chamado currículo oculto que envolve, entre outras coisas, o modo como a escola está organizada e os tipos de interação social hegemônicos dentro dela. Muitas vezes, o currículo oculto contradiz o projeto político-pedagógico propagado pela escola.
       Vimos, até aqui, uma noção de educação, fundada na ideia de processo, sequência, encadeamento. Podemos perceber esses processos em nossa rotina? Seriam os setores da nossa vida bem delimitados, compartimentados (família, amigos, trabalho etc) ou apenas os dividimos assim para facilitar nossa compreensão? Essa compreensão poderia ampliar-se a partir da reflexão de nossas práticas diárias? A práxis, reflexão sobre as próprias práticas, com o objetivo de transformar/melhorar a própria prática, seria cabível no contexto educacional? Nada mais pertinente a essa concepção educativa processual que a utilização de sequências didáticas para elaboração das aulas, atividades e organização dos conteúdos. No dizer da educadora Myriam Nemirovsky:
     
       Assumir que as atividades em classe podem ser estruturadas em sequências implica organizar um processo didático por meio do qual desencadeamos uma série de ações sucessivas e com diferentes graus de complexidade, que têm um propósito explícito e claro e que ocorrem ao longo de várias semanas ou meses. Essa forma de organizar as aulas se difere do modo educativo transmissivo, que vigorou durante muito tempo e lamentavelmente continua vivo em muitos lugares. Nele, o professor apenas repassava conhecimentos para as turmas e não havia o princípio de processo para o ensino e para a aprendizagem. As atividades estavam organizadas com base em uma concepção aditiva, em que se propunha uma atividade após a outra para treinar os alunos. A função das crianças era apenas adquirir o conhecimento passado pelo mestre. [Entrevista com Myriam Nemirovsky; Revista Nova Escola; 2011]

       Agora daremos a palavra ao professor Antoni Zabala:       

       [Sequência didática] Na unidade 4 vemos que em praticamente todas as atividades que formam a sequência aparecem conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais. Neste caso, os alunos controlam o ritmo da sequência, atuando constantemente e utilizando uma série de técnicas e habilidades: diálogo, debate, trabalho em pequenos grupo, pesquisa bibliográfica, trabalho de campo, elaboração de questionários, entrevistas, etc. Ao mesmo tempo, encontram-se diante de uma série de conflitos pessoais e grupais de sociabilidade que é preciso resolver, o que implica que devam ir aprendendo a “ser” de uma determinada maneira: tolerantes, cooperativos, respeitosos, rigorosos, etc. Nesta sequência vemos que, como outras, aparecem conteúdos das três categorias. Mas neste caso existe um trabalho muito explícito no dos conteúdos procedimentais e atitudinais (grifos nossos). Do mesmo modo que na unidade anterior, o fato de que apareçam estes conteúdos não quer dizer que exista uma consciência educativa. Enquanto isto não se traduza a maneira de trabalhar estes conteúdos por parte dos professores e não sejam objeto de avaliação, não poderemos considera-los conteúdos explícitos de aprendizagem. No entanto, se nos detemos na fase de avaliação, pode se ver que não se faz apenas uma avaliação da prova realizada, mas que a classificação é o resultado das observações feitas durante toda a unidade. Neste caso, pode se afirmar que se pretende que os alunos “saibam” os termos tratados, “saibam fazer” questionários, investigações, entrevistas, etc., e que cada vez “sejam” mais tolerantes, cooperativos, organizados, etc. [Zabala, Antoni; A Prática Educativa: Como ensinar; ed. Artmed, 1998]

       Devem ter percebido, igualmente, a utilização frequente da primeira pessoa em meus textos. A primeira pessoa não é recomendada em textos classificados como acadêmicos, todavia, percebi o potencial sócioafetivo dessa forma verbal e resolvi, singelamente, desafiar o establishment. Após ler vários textos de pedagogia e de história da educação, imaginei a possibilidade de aplicar esses conhecimentos didático-pedagógicos à estrutura do próprio texto. Conhecimentos muitas vezes pensados para a dinâmica das salas de aula poderiam ser adaptados à produção textual? Aproximação do estudante a partir de questões cotidianas; consideração pelos conhecimentos prévios do estudante; articulação entre cotidiano e conhecimento acadêmico; proposição de situações-problema significativas para o aprendiz; estímulo mental a partir de desafios, provocações e perguntas; estímulo à pesquisa; crença nas capacidades intelectuais do estudante, evitando respostas prontas e acabadas. O texto se pretende mais leve, mais colorido, mais desafiador ao mesmo tempo. Muitos estudiosos enfatizam a importância da afetividade no aprendizado. No âmbito textual, o que seria uma abordagem com potencial mais afetivo do que a utilização da primeira pessoa? Machado de Assis foi uma das minhas inspirações com seus diálogos diretos e desafiadores do narrador para com seus leitores. Meu “Eu” não irá sumir diante de impessoalidades frias e meus argumentos não enfraquecerão por explicitar minha personalidade e subjetividade, pelo contrário, serão elementos úteis a analises mais profundas de minhas obras, um espelho da minha tentativa de honestidade intelectual, de meu lugar de fala, de minha visão de mundo. Convido a todos a mergulhar nessa visão de mundo para, a partir dela, construírem suas próprias visões. Permitam-me ser um dos tijolos através dos quais edificarão seus sonhos.


Obs: Vídeos serão produzidos, gradualmente, sobre os chamados conteúdos procedimentais e atitudinais. Além disso, irei disponibilizar esses conteúdos e seus embasamentos teóricos digitalizados, no meu site, para download. Bons estudos! Gratidão pela atenção! OM


MAPAS MENTAIS