Olá galerinha do Baxter High e da Academia das bruxas. Para quem não assistiu a série da Netflix "O Mundo Sombrio de Sabrina" super recomendo e aproveito para deixar um alerta de spoiler...
Análise
de obra ficcional televisiva
(Chilling
Adventures of Sabrina)
Segundo
a Wikipedia, Chilling Adventures of Sabrina é uma série televisiva criada por
Roberto Aguirre-Sacasa para a plataforma streaming Netflix e baseada em
quadrinhos de mesmo nome, lançada em 26 de outubro de 2018, ambientada nos anos
60. A série também pode ser considerada uma releitura de uma produção anterior,
Sabrina, the Teenage Wicht, lançada em setembro de 1996. Este texto pretende
articular alguns estudos sobre bruxaria, inquisição e demonologia, na Idade
Moderna, com as mitologias evocadas para a constituição dessa série
estadunidense contemporânea.
Sabrina
é uma bruxa adolescente, vivendo um conflito identitário por ser metade bruxa,
metade mortal. A partir daí, podemos depreender um conceito de bruxa já presente
na obra incendiária dos dominicanos Kramer e Spranger, o Malleus Malleficarum de 1487: a ideia da bruxaria como um poder
intrínseco à pessoa e um fator hereditário. A situação mestiça da personagem
principal se dá pela união “ilícita” entre o pai bruxo e a mãe mortal. Evans
Pritchard, em seu livro Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, fez uma
distinção entre o conceito de bruxo e o de feiticeiro na região centro-africana,
justamente atentando para o caráter hereditário do primeiro e o de aprendizado
do segundo:
Os
Azandes acreditam que certas pessoas são bruxas e podem lhes fazer mal em
virtude de uma qualidade intrínseca. Um bruxo não pratica ritos, não profere
encantações e não possui drogas mágicas. Um ato de bruxaria é um ato psíquico.
Eles creem ainda que os feiticeiros podem fazê-los adoecer por meio da execução
de ritos mágicos que envolvem drogas maléficas. Os Azande distinguem claramente
bruxos e feiticeiros. Contra ambos empregam adivinhos, oráculos e drogas
mágicas (...) [Pritchard-Evans,
E.E (Edward Evans): Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande; Rio de Janeiro;
Ed. Jorge Zahar, 2005, pag. 33]
Essa
distinção empregada por Pritchard não se enquadra perfeitamente com o conceito
de bruxaria utilizado na série norte-americana. Pode-se dizer que os bruxos de Chilling Adventures of Sabrina seriam
tanto bruxos quanto feiticeiros, por possuírem poderes intrínsecos, herdados
pelos genitores e por aprenderem ritos mágicos, envolvendo palavras
específicas, acessórios especiais e manipulação de ervas. A Academia das Bruxas
encarna esse caráter de aprendizado, além disso, a série incorpora um
componente fundamental do mundo cristão, ausente na cosmovisão tradicional
Azande, o Diabo. Apesar do fator hereditário, a real origem dos poderes bruxos
seria o poder do próprio Lúcifer, considerando as bruxas como parte de seus
agentes no plano terreno. Essa foi a visão cristalizada no Malleus Malleficarum. Desse modo, a hereditariedade não explica
sozinha os poderes sobre-humanos dos bruxos que, dentro do universo
demonológico, apresentam-se inseparáveis do pacto com o Demônio:
(...)Consideremos,
também, as autorizadas opiniões dos Padres que comentaram as Escrituras e que
trataram em detalhes sobre o poder dos demônios e as artes mágicas. Podem
consultar-se os escritos de muitos doutores a respeito do Livro 2 das
Sentenças, e se comprovará que todos concordam em dizer que existam bruxos e
feiticeiros que, pelo poder do diabo, são capazes de produzir efeitos reais e
extraordinários, e não são imaginários, e que Deus permite que tal coisa
aconteça. Sem mencionar as muitas outras obras em que São Tomás considera em
muitos detalhes as ações deste tipo
(...) [Tradução Alex H.S.; O Martelo
das Bruxas, Brasil 2007, pag. 10]
(...)
Daí as bruxas, sem o exercício de um poder natural,
e apenas com a ajuda do diabo, podem provocar
efeitos danosos (...) [Tradução Alex H.S.; O Martelo
das Bruxas, Brasil 2007, pag. 28]
Devemos
em especial observar que esta heresia, a bruxaria, não só difere de todas as
outras, mas não apenas, no sentido de um pacto tácito, mas por um definido e expresso
com clareza, para blasfêmia do Criador que se esforça ao máximo em profaná-lo e
causar danos às Suas criaturas, pois todas as demais simples heresias não fazem
um pacto aberto com o demônio, isto é, nenhum pacto tácito ou expresso, ainda
que seus erros e incredulidades devam se atribuir, de forma direta, ao Pai dos erros
e das mentiras. Mais ainda, a bruxaria difere de todas as demais artes perniciosas
e misteriosas no sentido de que, de todas as superstições, é a mais conflitante,
a mais maligna, e a pior, pelo qual deriva seu nome por fazer o mal, e ainda
por blasfemar contra a verdadeira fé. (Maleficae dictae, a Maleficiendo, seu
amate de fide sentiendo). [Tradução
Alex H.S.; O Martelo das Bruxas, Brasil 2007, pag. 29]
O
Malleus, em seu esforço de apresentar
uma teologia filosófica, argumenta a respeito da natureza distinta do Diabo em
relação aos seres humanos. O Diabo, outrora conhecido como Lúcifer, seria um
anjo caído, ou seja, criado anjo com poderes divinos superiores aos mortais
humanos. A queda de uma parte dos anjos rebeldes, liderados por Lúcifer, não
suprimiu seus poderes sobre-humanos os quais, agora, seriam utilizados para
fins maléficos cujo objetivo principal era a perdição das almas, a profanação
da obra do Criador. Essa distinção entre os anjos divinos bons ou maus e os
meros mortais explicaria a impossibilidade da bruxaria de ser eficaz sem o
suporte dos poderes demoníacos. Os anjos caídos, segundo o Malleus (O Martelo das Bruxas: Parte 1: Tradução Alex H.S. 2007, pag.
19) poderiam provocar malefícios sem o intermédio de bruxas, mas utilizavam as
bruxas como instrumento porque desejavam corromper e causar a perdição de suas
almas. Assim, as bruxas figurariam não apenas agentes do Diabo como suas mais
profundas vítimas.
A
primeira temporada da série enfoca ao longo de vários episódios o tema do
pacto, abordando vários aspectos da questão. Apesar da relutância de Sabrina em
aceitar esse contrato diabólico, tudo termina ocorrendo de acordo com os planos
incontornáveis do senhor das trevas. O fato de nascer bruxa implicaria um laço
inexorável com o Anjo Caído, pois, como já dito, os poderes dos bruxos seriam
uma espécie de concessão do Diabo, da mesma forma que os atos miraculosos
seriam uma manifestação do poder do próprio Criador. Esse fato foi
exemplificado na série pelo surgimento de anjos caçadores de bruxos que
possuíam poderes sobrenaturais de natureza diversa da bruxaria. Dentro dessa
lógica expressa na série e gestada desde o medievo europeu, os seres humanos
eram reles mortais, dependentes da tutela, seja da divindade trevosa, seja do
Criador Cristão. O Deus criador assim como seu anjo rebelde seriam as únicas
fontes possíveis de poder. Desse modo, realizar proezas sobre-humanas necessariamente
ligaria o prodígio a uma das forças divinas. Em outras palavras, como
demonstrado na série, renegar o Diabo, renunciar ao pacto, seria equivalente a
renunciar aos poderes bruxos.
Essa ligação intrínseca entre as bruxas
e o Diabo trouxe outras sérias implicações apontadas, por exemplo, por Trevor
Roper, estudioso das bruxas na Idade Moderna. Ainda que a mulher denunciada
como bruxa não tenha realizado nenhum malefício, o simples fato de ser
considerada bruxa já denotaria uma renegação a Cristo, à fé católica, uma
heresia, uma profanação, tudo isso encarnado na ideia do pacto. Desse modo,
essa mulher poderia ser penalizada, pois o próprio ato do pacto já envolvia em
sua cena, segundo acreditavam os inquisidores, a inversão das liturgias e
dogmas católicos com sua adoração ao Demônio, suas orgias e antropofagias,
envolvendo crianças:
(...)A
bruxa, como veremos, é perseguida simplesmente por ser uma bruxa; o judeu por
ser um judeu, por razões não de crença mas de sangue, por defeito de “limpieza
de sangre”. [Roper, Trevor: A Crise no século XVII:
Religião, A Reforma e Mudança Social; Ed. Topbooks, 1967, pag. 172]
(...)
Assim,
na ausência de um “grave indicium”, tal como um pote cheio de membros
humanos, objetos sagrados, sapos, etc. ou pacto escrito com o Demônio (que
seria uma peça rara de colecionador), um indício circunstancial era suficiente
para mobilizar o processo. E o indício circunstancial não precisava ser muito
convincente: era suficiente descobrir uma verruga pela qual o espírito família
era amamentado; um sinal insensível que não sangrava quando picado; uma
capacidade para flutuar quando lançado na água ou uma incapacidade para verter
lágrimas. Era possível recorrer até mesmo a “indicia mais leves”, como
uma tendência para olhar para baixo quando acusado, sinais de medo ou simples
aspecto de uma bruxa, velha, feia ou malcheirosa. Quaisquer desses” indicia”
poderia estabelecer um caso de “prima facie” e justificar o uso de
tortura para produzir a confissão, que era a prova, ou a recusa a confessar, que
era prova ainda mais convincente, e justificava ainda torturas mais violentas e
uma morte mais horrível. [Roper,
Trevor: A Crise no século XVII: Religião, A Reforma e Mudança Social; Ed.
Topbooks, 1967, pag. 186]
A
Igreja, noiva recatada e obediente a Cristo, comungando de seu corpo
sacrificado e transubstanciado, transforma-se na prostituta do Diabo, rebelde à
doutrina católica e às convenções sociais, mimetizando a comunhão sagrada
através de uma blasfêmia hedionda. Fica assim pintada a imagem pitoresca do “sabá”
e sua missa invertida, imagem construída, muitas vezes, a partir de confissões
colhidas sob a pressão das torturas amalgamadas a crenças populares
preexistentes.
A
imagem do “sabá” como inversão da missa católica e das bruxas como noivas do
Diabo, parodiando a Igreja como noiva de Cristo, foi materializada na cena do
aniversário de Sabrina em que ela se tornaria, efetivamente, bruxa, ao assinar
o livro da besta, em outras palavras, realizar o pacto de sangue com o Demônio.
Antes de participar da cerimônia satânica, a protagonista desolada, resolve se
despedir dos seus amigos mortais e utiliza um vestido de noiva como fantasia de
um baile encetado pelo seu colégio comum. Nesse capítulo, ela renega o Diabo,
temerosa de sua liberdade, ao passo que é lembrada pelas suas tias bruxas que
perderia os poderes caso não consumasse o pacto, reforçando o argumento sobre a
fonte do poder bruxo e explicitando a relação assimétrica entre bruxas e o
Demônio.
Na cena específica da renúncia ao pacto,
vemos um ambiente sombrio e sinistro no interior de uma floresta. O ritual de
passagem para o mundo bruxo inicia com a emblemática transformação do vestido
branco em vestido preto, sob a luz de uma lua de sangue, opondo-se ao signo
solar. Vários bruxos reunidos e alguns portando máscaras assustadoras, com
sangue pelo corpo, animais sacrificados e um nítido tom de grande solenidade
com o padre da Igreja satânica presidindo a reunião, esse é um “sabá” mais
próximo da concepção moderna tradicional, a concepção inquisitorial que
insistia na existência de reuniões frequentes em florestas tarde da noite para
profanar os sagrados dogmas católicos, aliás, as palavras - profana e
profanação - são corriqueiras na série para referir-se subversivamente aos
rituais da Igreja satânica em contraposição explícita à Igreja católica e ao
chamado falso deus.
O “sabá” das bruxas, tema bastante
recorrente nos manuais demonológicos da modernidade, apareceu na série,
principalmente, nessa cena do pacto, a assinatura de Sabrina com o próprio
sangue no livro da besta. O “sabá” remete a uma reunião misteriosa e demoníaca,
no seio de florestas escuras sob a luz do luar. Essa crença nas assembleias
satânicas parece ecoar antigos ritos ligados à fertilidade e à natureza, da
mesma forma que a maneira peculiar de ir até o “sabá” conecta-se com crenças
difusas estudadas por Ginzburg em regiões que abrangem o norte da Itália,
partes da Alemanha e região balcânica. Há uma crença em que pessoas são capazes
de sair do corpo na forma de espíritos, em determinadas épocas do ano, para
lutar contra feiticeiros também em forma de espíritos, a fim de garantir boas colheitas (Ginzburg,
1988, pag. 25). Hoje, certas correntes espiritualistas poderiam facilmente
identificar essas saídas noturnas como projeções astrais, projeções da
consciência ou experiências fora do corpo. No entanto, os manuais dos
inquisidores falam em idas em carne e osso, portanto vassouras mágicas, entre
outras artimanhas.
Em Chilling Adventures, o tema da
projeção astral aparece variadas vezes, mas não evocando os cultos agrários, as
batalhas entre bruxas e benandantis (Ginzburg,
1988, pag. 22), as procissões junto aos mortos ou o mito do exército furioso e
suas cavalgadas noturnas lideradas por uma divindade feminina, identificada
como Diana em algumas regiões da Europa, a mesma Diana referenciada no próprio Malleus (Trad. Alex H.S., 2007, pag. 9).
Na série, a habilidade de sair do corpo surge mais ligada a assuntos
pragmáticos como o encontro amoroso do personagem Ambrose ou uma tentativa de
alertar os amigos mortais por Sabrina. Contudo, a execução do ritual feito de
barriga para cima, associado aos diversos perigos do plano astral, podendo
levar à morte fazem eco nas crenças do final do medievo e do início da
modernidade europeia que imaginavam essa visita ao mundo dos espíritos como
bastante perigosa. Caso o corpo do sensitivo fosse contemplado e iluminado ou
fosse enterrado por engano, por exemplo, o espírito ficaria impedido de voltar
e vagaria por aquela dimensão até expirar o tempo de vida a ele destinado,
segundo os depoimentos dos chamados benandantis,
estudados por Ginzburg:
Frei Felice objeta:
“Se vós dormíeis como respondestes a eles e como ouvistes a sua voz?” E Paolo:
“ O meu espírito lhe respondeu” e explica que é o espírito deles que parte “ e
se por acaso na nossa ausência, alguém for iluminar o nosso corpo para
contemplá-lo, naquela noite o nosso espírito não poderá voltar, enquanto
estiver sendo observado; e se o corpo parecendo morto for enterrado, o espírito
irá vagar pelo mundo até o momento previsto para a morte do corpo” (...) [Os Andarilhos do Bem; Ginzburg,
Carlos; São Paulo, Companhia das letras, 1988, pag. 27]
Voltando à cena do pacto, podemos notar
que a relutância da protagonista em assinar o livro da besta gira em torno da
questão da liberdade e do livre-arbítrio. Nesse quesito, é interessante
observar mais uma vez o contraponto ao mundo cristão, um contraponto que se
revela ambíguo na série. Criticando os paradigmas cristãos, o personagem que
encarna a autoridade da Igreja sombria, padre Faustus, alega representar a
verdadeira liberdade, sem as castrações impostas pelos dogmas católicos. Longe
da imagem malévola alimentada pelos cristãos, Lúcifer seria o promotor da
liberdade. Contudo, o desenrolar da série contradiz a imagem do Diabo
benevolente e apresenta o mais ardiloso dos tiranos. A série parece criticar as
duas ortodoxias, a luciferana e a cristã, introduzindo Sabrina como uma espécie
de terceira via, lutando entre dois mundos intolerantes e preconceituosos.
As contraposições constantes entre
forças do mundo cristão e suas representações especulares com imagens
invertidas uma da outra ocultam o silenciamento perverso das cosmovisões
não-cristãs e não enquadradas nos referenciais desse sistema teológico. O caso
dos benandantis já citado é apenas um
exemplo de crenças com referenciais próprios, lógica interna autônoma e que,
nesse caso, termina sendo engolido pelo feroz enquadramento inquisitorial cristão.
Podemos citar também a divindade africana Exu, identificado com o Diabo cristão,
a fim de ganhar inteligibilidade para os conquistadores portugueses, uma falsa
inteligibilidade, pois esse enquadramento forçado distorce completamente o
sistema de crenças do qual a entidade faz parte.
Outro ponto fundamental na série é a
centralidade das mulheres. É ponto pacífico entre os estudiosos da perseguição
às bruxas que o principal alvo do Santo Ofício eram as mulheres, focando no
estereótipo criado da velha, solteira, sozinha e geralmente pobre. As mulheres
não tuteladas por homens pareciam sempre perigosas, uma subversão à ordem
reinante. Nota-se que as bruxas, apesar de sua rebeldia para com as leis do
Deus católico, acabavam por submeter-se às leis de outra figura masculina, o
Diabo. A possibilidade dessas mulheres terem poder era tão impensável que suas
artes misteriosas só poderiam ser possíveis graças ao Demônio. Outra vez o
padre Faustus exemplifica explicitamente a misoginia hegemônica, apegado a
valores antigos. Sabrina recusa a tutela de Deus e do Diabo, recusa a
obediência cega àquelas figuras masculinas dominantes, ela ousa trilhar o
próprio caminho, demonstrando seu próprio poder.
Seja lutando contra os Blackwoods,
contra os brutamontes preconceituosos do Baxter High ou desafiando o senhor das
trevas, Sabrina fez as escolhas que lhe foram negadas pelas autoridades
temporais ou espirituais. A personagem Lilith, esposa de Lucifer, que inicia
sua aparição submissa ao seu senhor, parece inspirada por Sabrina a lutar pelo
seu lugar ao sol. A segunda temporada termina com a ascensão de Lilith, uma
mulher, ao trono do Inferno e a derrota de Lúcifer por Sabrina e seus amigos.
Sabrina encarnou o livre-arbítrio, conquistando a liberdade, ao persistir no
ato de escolher. Diante de aparentes destinos inexoráveis, a aprendiz de
feiticeira decidiu narrar o impossível escrevendo com sangue no seu próprio livro.
Espero que tenham gostado sem se assutar ^^ e até o próximo post...
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