terça-feira, 10 de maio de 2016

A Outra



     Olá galerinha do bem e do mal, esse texto foca o papel da mulher no mundo indígena e na Conquista espanhola do séc XVI, referenciado nos seguintes textos: Imagens da terra fêmea:  a América e suas mulheres ( Mary Del Priore); Las Mujeres de Hispanoamerica ( Josefina Muriel)


      Entre a avidez metalista do conquistador espanhol e a virilidade guerreira das sociedades ameríndias existem valores naturalizados femininos relegados a segundo plano ou simplesmente desvalorizados por serem opostos as virtudes consideradas masculinas. Logo, aqueles que personificavam esses valores, notadamente as mulheres, eram mal vistos, marginalizados, silenciados e/ou tolerados como um mal necessário.
      A imagem de fragilidade, de predomínio das emoções ( inteligência débil), faziam das mulheres espanholas e indígenas pessoas de segunda classe em suas respectivas sociedades. Sendo as espanholas comparadas a crianças e inválidos (imbecilitas sexus), precisando ser tuteladas indefinidamente e as indígenas incapazes de intervir nas políticas dos Estados Astecas, Maia ou Inca.
      A despeito dessas sociedades patriarcais, essas mulheres atuaram nos mais diversos setores da vida social. Europeias, indígenas e mestiças mostraram-se parte fundamental no funcionamento de cada sociedade onde o homem impunha sua ordem.
      A Espanha mercantilista do século XVI era a Espanha das expansões ultramarinas; dos negócios a longa distância; da ascensão da burguesia; da expansão da fé católica. É evidente a predominância da mentalidade masculina em relação a esses grandes empreendimentos, ou seja, só poderiam ser executados por homens.
      As espanholas eram em sua maioria analfabetas, quando muito, recebiam uma educação básica em leitura primária e religião. Quase como se fossem objetos de decoração refinados, a fim de enfeitar a casa. Elas não eram iniciadas em conhecimentos náuticos, como a cartografia, leitura de bússolas, astronomia e matemática. Também não estavam inseridas no grande comércio, nos negócios masculinos que exigiam muita sagacidade e riscos enormes. Seu ideal de vida se restringia aos lares, os quais deveriam zelar, educar os filhos pequenos e obedecer seus maridos.
      A mulher ameríndia assim como a espanhola encontrava-se submetida ao julgo dos homens. A legislação e as crenças religiosas colocavam-nas numa situação desvantajosa. As próprias posições das deusas em referência aos deuses são reflexo da organização sócio-política dos povos pré-colombianos. Os deuses principais eram masculinos, guerreiros com grandes feitos heroicos. Já as deusas revelavam todo o lado maternal, vinculado ao lar e as virtudes de obediência, doçura e humildade e mesmo a deusa que fosse guerreira sofria um processo de masculinização.
     O ideal nunca se expressa no mundo concreto sem a mácula da realidade prática. Por isso as espanholas, através de inúmeras brechas, vácuos deixados pelo sistema castrador, demonstraram serem corajosas guerreiras. Elas incentivaram e cuidaram de seus maridos e compatriotas. Elas incorporam a imagem do conquistador em si mesmas, nivelando-se com eles em diversas situações desse cotidiano conturbado da conquista.
      A mulher espanhola não pode ser vista de modo homogêneo. Cada uma possui suas peculiaridades e estavam inseridas em diferentes contextos sociais: nobreza, clero, burguesia, camponeses e escravos. Sem dúvida, as mulheres das elites usufruíam de mais influência e benesses, além de não se solidarizarem enquanto pertencentes ao mesmo gênero a aquelas das bases da pirâmide. Isso é verdadeiro tanto nas sociedades ibéricas como nas ameríndias, com distinções relativas às diferentes hierarquizações sociais.
      Apesar das limitações muitas mulheres astecas comerciavam, eram curandeiras, parteiras, tecelãs entre outras atividades. As espanholas que emigraram para a "Nova Espanha", por exemplo, além de pegarem em armas também geriram negócios, administraram escravos e terras.
      O matrimônio, na sociedade pós-conquista era um meio das mexicanas ascenderem socialmente, principalmente se casassem com terratienetes ou encomenderos. A diversidade de papéis desempenhados pelas mulheres se impunha diante da tentativa de uniformizá-los e restringi-los ao papel da esposa.   
       Ao lado de tradições culturais moldadas séculos após séculos, a Igreja católica contribuira sistematicamente para inferiorizar a mulher. O pecado original: fonte de todo o mal teria sido provocado por uma mulher. A partir da Eva primordial, reproduziu-se sobre todas as mulheres o estigma de tentadoras, personificações da sedução demoníaca.
      Tanto ameríndios, espanhóis como as sociedades mestiças (pós-conquista) construíram ordens sócio-políticas que privilegiavam os homens e em especial os homens da nobreza. Todos os valores e ideias que ameaçaram  a ordem vigente foram violetamente combatidos. Nesse sentido, valorizar certas características tidas como femininas ou nivelar a mulher em relação ao status jurídico do homem seria o mesmo que desestruturar toda a sociedade, suas concepções religiosas, sua visão de mundo, sua política, enfim, tudo, afinal, tudo está vinculado indissociavelmente a tudo.
     Para ilustrar a ideia acima, temos a conversão forçada que se realizou na região do México. Muitos indígenas adotaram práticas católicas de modo superficial, apenas como uma forma de sobrevivência, enquanto seus cultos antigos resistiam sob o signo das inúmeras manifestações sócio-culturais: gestual, danças, festas, língua. Alguns religiosos perspicazes perceberam que converter era muito mais que apenas converter a religião, era converter absolutamente tudo, de modo que se configurava uma tarefa impossível de ser cumprida em sua plenitude.
      Assim, a valorização da mulher equivale a uma restruturação de toda a sociedade e não simplesmente de um setor isolado. Ela era o outro invisível segundo as conveniências e concepções. Ela é a passividade ativa entre os silêncios impostos. Ela contradiz o discurso dominante, mas encontra-se multifacetada na própria rede hierárquica que a subjuga. As diversas categorias de mulheres, dificulta a solidariedade entre elas. O fato de se manterem presas a seu lugar de origem, com algumas exceções, impede que vislumbrem uma visão menos fragmentada do mundo.
      À visão do homem em relação à mulher, soma-se a visão da mulher em relação a si mesma e complica-se nas diversas categorias de homens e mulheres que lançam diferentes olhares uns sobres os outros. Em meio a estupros e violências, as mulheres demonstraram que nem só de força bruta vive o homem e que na aparente fragilidade e emotividade, poderiam ser excelentes estrategistas e sabiam exigir seus direitos, a exemplos dos casos de maridos e/ou pais irresponsáveis. Grandes estrategistas menos para as guerras formais que para a funesta guerra do cotidiano travada continuamente. E apesar das desvantagens impostas e quedas, elas seguem lutando, negociando e evidenciando que estão vivas em todos os sentidos.