Mais de 2000 anos separam o pesquisador
contemporâneo daquele que protagonizou uma ruptura de enormes proporções na
história do chamado Ocidente. Uma ruptura na própria concepção de história onde
predominava o eterno tempo cíclico, permitindo, junto à outros inúmeros
influxos, o desenvolvimento futuro da disciplina História, tudo isso, claro,
observado retrospectivamente, porque o cristianismo recém-nascido emergira como
uma tendência quase insignificante do tronco judaico, composto por um pequeno
grupo de pessoas “comuns” e anônimas envoltas nas densas brumas do tempo.
A distância entre o historiador e seu
objeto de estudo pode ser um fator benéfico para inalcançável e incontornável
alvo da objetividade que sempre será maculado para uns e colorido para outros
pelos primas caleidoscópicos da subjetividade. No entanto, ainda que o fazer
historiográfico atual admita uma ampla gama de fontes e um alargamento da noção
de documento é fato notável a escassez documental a medida que recuamos mais e
mais no tempo. Essas areias desérticas da história são, por vezes, pontilhadas
por alguns oásis esparsos, verdadeiros faróis do conhecimento antigo. Nesse
caso específico, lidamos com poucos documentos de cunho explicitamente
evangélico (não histórico ou biográfico no sentido preciso do termo) e de
autoria cristã, por isso a dificuldade em enxergar outros primas do
caleidoscópio, capazes de evitar os perigos da narrativa unilateral.
Como se não bastassem as dificuldades
apontadas acima, tudo torna-se mais complicado quando resolvemos abordar um
tema por demais espinhoso, um tema capaz de mobilizar as paixões mais
viscerais, seja dos adoradores do Cristo ou seja dos seus inúmeros detratores. Para
além do plano da fé individual ou da ausência dela no sentido espiritual, nos
deparamos com as feridas abertas deixadas pela separação formal e gradual entre
a Religião e a Ciência ocidentais, efetivada durante o séc. XIX. Religião,
representada nesse Ocidente pela toda poderosa Igreja Católica e seus famosos
conflitos, principalmente na Idade Moderna envolvendo todos os pensadores que
colocassem em xeque seus preciosos dogmas. A Ciência cientificista saiu
vitoriosa da querela secular e caiu nas graças do povo (enquanto Hiroshima e
Nagasaki ainda permaneciam de pé), contudo a Religião conseguiu preservar seu
pedacinho do céu fora das garras da curiosidade científica. E como a mente
humana trabalha através de variadas associações, então fica claro o tamanho da
dificuldade para o historiador atual: religião, igreja católica, Jesus Cristo,
inimigos da ciência, anti-científico, fé, espiritual, metafísica, Jesus
histórico etc.
Essa contextualização faz-se necessária
para compreender os cuidados hercúleos tomados por Dominic Crossan a fim de
acessar da melhor maneira possível, dentro dos parâmetros da disciplina
História, o famigerado Jesus histórico. A necessidade de contextualização é
reiterada repetidas vezes por Crossan em seu artigo:
“A
separação e o estudo desconectado do contexto histórico e texto do evangelho,
nos quais nenhum dele pode influenciar decisões a respeito do outro.
O estudo do contexto antes do texto: o
contexto histórico da Galiléia de Herodes Antipas na década de 20 do século I
d.C. deveria ser estabelecido antes do estudo dos textos dos evangelhos
cristãos.
O estudo do contexto sem o texto: o
conteúdo histórico deveria ser estabelecido separadamente de qualquer evangelho
cristão. Na medida em que o evangelho cristão, a partir da sua natureza da sua
função de Boa Nova, sempre envolve uma reinterpretação altamente criativa de
uma dada tradição, os contextos dos anos 20 a 90 são progressivamente unidos
(...)” [CROSSAN, John Dominic. Texto e
contexto na metodologia dos estudos sobre o Jesus Histórico. In: CHEVITARESE,
André; CORNELLI, Gabrielle; SLEVATICI, Monica (org.). Jesus de Nazaré: uma
outra história. São Paulo: Annablume, 2006, pp. 165-166.]
Para além da questão da importância do
contexto de modo mais global, Crossan hierarquizou o processo de
contextualização em três níveis distintos, do mais geral ao mais específico respectivamente:
nível antropológico, histórico e arqueológico. Como citado acima, ele enfatiza
a necessidade de estudar a fundo esses contextos antes de examinar os textos
evangélicos, desse modo, evitaria olhar para os contextos a partir das lentes
textuais, podendo o pesquisador com isso endossar inadvertidamente as
narrativas evangélicas ou perder-se no emaranhado dos diferentes olhares. Isso
não significa que o autor desconsidere a
relevância da interatividade entre texto e contexto, não apenas os contextos da
época estudada como o próprio contexto formativo do pensamento do autor, o
contexto presente. Em outras palavras e nas palavras dele, um diálogo
constante.
Outro cuidado de Crossan que, na
realidade reflete muito mais uma opção declarada seria de privilegiar os
documentos considerados mais antigos que supostamente estariam mais próximos
dos testemunhos oculares da vida de Jesus. O autor não pressupõe que a
antiguidade seja sinônimo de fidelidade maior aos fatos narrados, apenas aponta
seu recorte no que se refere às fontes trabalhadas, frisando a vinculação da
escolha ao relativo consenso da comunidade científica a respeito da
autenticidade dessas fontes.
A respeito das principais fontes
elencadas para compreender o Jesus histórico, o autor adverte para
inevitabilidade de outra escolha deliberada: as dependências, independências ou
interdependências entre os evangelhos sinóticos e entre os outros textos do
Novo Testamento utilizados, sem contar com os chamados textos
veterotestamentários, os intertestamentários e os apócrifos ou gnósticos
posteriores. Quem seria anterior a quem? Quem seria fonte de quem? Quem teria
influenciado quem e/ou quais seriam as influências mútuas? Para tentar
responder essas questões, a escolha de Crossan foi declarada, consciente da
imprescindibilidade dessa escolha assim como de sua dose de arbitrariedade,
visto que não goza de consenso absoluto entre os estudiosos do assunto. A
arbitrariedade, no entanto, decorria da natureza das fontes e não da
irresponsabilidade ou desonestidade intelectual do autor que, aliás, faz o
possível para debela-la e persuadir seus colegas pesquisadores a partir dos
seus profundos estudos de contextos e de exegese bíblica, recorrendo a
linguística, a antropologia, a história e à arqueologia, por exemplo. Assim
fica ilustrado o caráter interdisciplinar de sua metodologia.
Crossan concorda com existência de uma
fonte escrita Q, anterior aos evangelhos, produzida na época apostólica, mais
ou menos contemporânea das epístolas paulinas que teria sido a fonte dos
evangelhos posteriores, iniciando por Marcos. Mais que isso, ele infere a
existência de uma fonte escrita mais antiga, uma espécie de proto-Didaquê,
analisando semelhanças e diferenças entre determinados ditos que aparecem nos
sinóticos, em Paulo e em Didaquê. Sem contar com a tradição oral anterior a
esses escritos, mas que estaria refletida na diversidade de formas encontradas
neles, quanto a construção das frases e quanto a ordem em que aparecem.
O Jesus histórico seria o mesmo Jesus
da fé? Do ponto de vista metodológico, mais importante que responder corretamente
essa questão seria atentar para o perigo das concepções a priore, conclusões feitas antes da pesquisa que denotam uma atitude
anticientífica e deformam seu objeto de estudo a imagem e semelhança de seu
pseudo-pesquisador. Vale lembrar do
racha entre Ciência e Religião citado acima em que a fé foi relegada ao campo
metafísico e por isso mesmo fora da área de interesse científico ou mesmo
considerada inacessível à pesquisa científica, em outras palavras uma questão
de fé simplesmente. Do mesmo modo Jesus, personagem central de umas das maiores
religiões do planeta havia sido relegado ao campo da meta-história, com sua
existência questionada ou considerada fora do campo de interesse da História.
Uma questão de fé, diriam eles, porém muito mais uma questão de método e acima
de tudo uma questão de paradigmas.
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